domingo, 10 de agosto de 2008

No princípio era o caderno (L.F.T.)


Quando mocinhas, elas podiam escrever seus pensamentos e estados d'alma (em prosa e em verso) nos diários de capa acetinada com vagas pinturas representando flores ou pombinhos brancos levando um coração no bico. Nos diários mais simples, cromos coloridos de cestinhos floridos ou crianças abraçadas a um cachorro. Depois de casadas, não tinha mais sentido pensar sequer em guardar segredos, que segredo de mulher casada só podia ser bandalheira. Restava o recurso do cadernão do dia-a-dia, onde, de mistura com os gastos da casa cuidadosamente anotados e somados no fim do mês, elas ousavam escrever alguma lembrança ou uma confissão que se juntava na linha adiante com o preço do pó de café e da cebola.

Os cadernos caseiros da mulher-goiabada. Minha mãe guardava um desses cadernos que pertencera à minha avó Belmira. Me lembro da capa dura, recoberta com um tecido de algodão preto. A letrinha vacilante, bem desenhada, era menina quando via minha mãe recorrer a esse caderno para conferir uma receita de doce ou a receita de um gargarejo. "Como mamãe escrevia bem! - observou mais de uma vez. - Que pensamentos e que poesias, como era inspirada!".

Vejo nas tímidas inspirações desse cadernão (que se perdeu num incêndio) um marco das primeiras arremetidas da mulher brasileira na chamada carreira de letras - um ofício de homem.

(Lygia Fagundes Telles)




Crônica da capa do meu Projeto Multimídia, um espetáculo teatral baseado no universo feminino da obra de Lygia Fagundes Telles. Esta crônica está no livro A Disciplina do Amor, da mesma autora. Eu recomendo!

Bjuss... y